top of page

 

Fabrícia Jordão 

 

Claudia Nên é artista plástica natural de Itabaiana (Sergipe). Iniciou seu trabalho artístico com o desenho, logo depois transitou entre a técnica da xilogravura e da escultura. Como resultado desse diálogo surgiu a escultura em argila que traz fortes elementos da xilogravura, seja na representação do imaginário popular ou de temas da contemporaneidade.

 

Em muitos de seus trabalhos é possível perceber um movimento dialético que nos conecta a duas temporalidades, muitas vezes percebidas como distantes e distintas, o imaginário cultural e popular brasileiro e os conflitos próprios da sociedade contemporânea. O primeiro é percebido sobretudo nas técnicas empregadas, o segundo na forma-conteúdo. 

 

Desse movimento, que confronta a tradição com o tempo presente e um futuro inexistente, emerge um ser humano solitário que longe da alegria – geralmente associados as festas, aos ritos e as tradições populares nordestina – demonstra uma angústia própria da solidão, do individualismo, da impossibilidade contemporânea da experiência e do existir enquanto comunidade. 

 

Em sua produção, o tradicional conjunto nordestino perde o tom celebratório e sua unidade. Os tocadores, com os olhos e bocas arqueados negativamente, se conectam nos seus individualismos e introspecção. Seus rígidos marinheiros, com olhares atemporais, tentam equilibrar suas solidões, pequenez e minúsculos barcos em um presente absoluto. A mítica hidra grega, assume a forma antropomórfica e parece materializar a dilaceração e fragmentação identitária do homem contemporâneo. Seus pares, alienados do presente que os conecta e para o qual o novo e o velho parece não atuar como referência ou elo de ligação, olham em direções opostas. 

 

Outro tema presente em sua produção, a ideia do duplo, assume a forma de uma impossibilidade. O sujeito (e seu duplo) não consegue efetivar  o processo de  duplicação e individualização do eu. Do mesmo modo, suas tentativas de materializar ações colaborativas resultam em arranjos formais desconfortáveis como a evidenciar a impossibilidade do existir coletivamente. 

 

É possível pensar a produção de Claudia Nên, desde uma perspectiva do indivíduo, com uma explicitação da problemática condição do homem pós contemporâneo e o seu destino. Seus fracassos, frustrações e impossibilidades. Suas indagações, por não apresentarem saídas, nos insere no mesmo impasse e dilaceração em que se encontra: a solidão de um presente absoluto. 

(São Paulo, junho, 2016)

                                 ________________________________________________________________________

MIRAGENS & ENCAIXES DE CLAUDIA NÊN

5.993cc

Adolfo Montejo Navas

 

Ainda faz parte do estereotipo do popular, considerar qualquer suposta criação estética de seu âmbito como desígnio, reduto, destino inapelável de um imaginário tipificado sociologicamente, ou seja, pobre de condição (não povera), quase sempre do origem rural, também de baixa renda ou escolaridade, e que por mistérios da vida ganha entidade artística, corpus imagético para revelar a "alma do povo", uma visualidade que pode ser instigante mas sempre dentro das coordenadas conveniadas, muitas vezes como pacto contratual de imagens entre artista, crítica, público, como se só fosse possível determinada recepção, olhar ou experiência. 

 

Obviamente, se esquecem aqui muitas ironias culturais, de vinculações transversais modelo vanguardas e imaginários étnicos, cruzamentos e influências de outras culturas e períodos, ou imaginários populares transvasados ou metamorfoseados em obras contemporâneas (a lista disto não seria miúda), sem contar a revolução plástica que significou a reavaliação das imagens do inconsciente ou a art brut, entre outros, por exemplo. Ao mesmo tempo, a chegada de épocas mais multiculturalistas também alimentou esta vertente de inclusão estética -quase politicamente correta como um mea culpa da história- ou de outra aproximação crítica mais valiosa e menos preconceituosa.

 

A obra de Claudia Nên, divisada em tempo por Agnaldo Farias in situ, em sua nascente sergipana, quebra exemplarmente esta territorialidade cultural, digamos melhor este confinamento, se despe de atavismos de gênero, e se convoca para outra fala estética mais livre, pois todas suas peças -autônomas, fazendo parte de conjuntos, ou sendo o híbrido das duas coisas, já como figuras que são unidade e conjunto a sua vez-, bem poderiam sintonizar-se com alguns âmbitos figurativos do nordeste, pela sobriedade tonal, a fonte fabuladora ou pela marca de seu desenho altamente sintético, e ficar nesse tranquilo registro. Pelo contrário, estamos diante de um poética autônoma, que oferece seus sinais próprios, seus outros encaixes, desencaixes. 

 

Longe portanto de atavismos semânticos que relatam o chamado arte popular como geografia exclusiva da inocência ou também de certas raízes quase bucólicas, de um outro espaço sem tempo, chama muito a condição visual de contraste de todo o trabalho de Claudia Nên, erigido sobre uma dupla situação paradoxal: a de ser esculturas de pequeno e meio formato que religam a relação com o material da terra, ser desenho tridimensional com argila (como faz a cerâmica a seu modo, se ser-lo nunca em nosso caso), e ao mesmo tempo, estas peças apontam para outro sentimento do tempo -e em consequência, outro sentimento do mundo (utilizando o sábios títulos de Giuseppe Ungaretti e de Drummond de Andrade, respectivamente).

 

Neste sentido, as lúcidas observações de Fabrícia Jordão sobre a artista evidenciam esta tensão a todos os efeitos: "Desse movimento, que confronta a tradição com o tempo presente e um futuro inexistente, emerge um ser humano solitário que longe da alegria – geralmente associados as festas, aos ritos e as tradições populares nordestina – demonstra uma angústia própria da solidão, do individualismo, da impossibilidade contemporânea da experiência e do existir enquanto comunidade". E é este elixir contemporâneo o que se respira atravessando as aparências de cenas estranhas, mirabolantes, bizarras, de circo ou simplesmente absurdas (atenção, como exemplo, para as três circunstâncias desenhadas com barcas, duas grupais, no limite do naufrágio dos imigrantes e da patera dos noticiários) e uma com um só personagem de pé (que parece testemunhar algo inédito, habitar o espírito romântico, o olhar imenso para uma paisagem que deixou de ser o êxtase paisagístico de Gaspar Friedrich, tal vez para ser o conturbado sublime de nossos dias). 

 

De fato, seja tempo, mundo, a dialética desta poética, destas figuras, cuja síntese é quase impossível-, está fora de ser resolvida, aliás, se mantém como equação estética rarefeita, daí os ruídos visuais presentes, certo desassossego visual, seja a existência múltipla de variações físicas: de múltiplos rostos, de cabeças espelhadas, de vários corpos manifestando-se, com a cabeça fora de lugar, etc., seja a posição-construção totêmica, hierática ou absolutamente heterodoxa, nada convencional, profana. Seja também a sensação de nonsense que as imagens promovem, muitas vezes criando redemoinhos ou rodopios figurativos, situações que parecem não delimitar o fora, o exterior do dentro, o interior. Há uma tendência na artista de oferecer certo avesso, mostrar como a esculturas produzem enxames, convergências, duplicações, reflexos, um outro lado porosamente incorporado, comungado.

Veja-se senão como é a atenção focalizada na maioria das figuras, a sua efígie espiritual, seja de confronto ou de franca ironia em sua própria configuração -qual meta-linguagem de sua condição-, onde se reconhece a construção de identidades em expansão ou em nítido conflito (pluralidade de cabeças, ou cabeças-reverso), numa dialética de contraste, de duplo ser ou então uma identidade que se faz hermafrodita, vária, como hidra, medusa, várias cabeças ou vários corpos. O lugar do corpo recebe aqui uma forte alteração, um grau de alteridade estranha, magnificada pela definição em preto e branco, pelas linhas de seu recorte, as vezes entranhando encaixes.

Contudo, o que temos sempre à vista são situações de perplexidade, de um olhar além, de certo assombro, como sensações que poderiam estar às vezes dispostas na mesa de Kafka como objetos-emblemas, por exemplo, como miragens cujo encaixe verdadeiro, no fundo, está em suspenso, sem definição certa. E neste pathos que beira uma dramaturgia quase metafísica, além do visto, neste ar de nonsense aludido tão asceticamente por Claudia Nên, todos os olhares que as figuras emanam abrigam miragens, sabedoras do deserto do real contemporâneo.

(São Paulo, novembro, 2016)

________________________________________________________________________

INDISCIPLINA POPULAR

Leonardo Araujo Beserra

Talvez este texto venha a ser estranho aos olhos d’outros, desse “você” que lê, dos “elxs” a que se dirige e do “ela” a que o sobre se discorre,  pois com certeza não se fará aqui um ensaio esperado acerca dos objetos e processos subjetivos de uma artista nordestina que apresenta um conjunto de esculturas que se poderia facilmente delimitar à qualidade “popular”. Não espere que se faça uma negativa ou evasão a este contexto, o universo popular nada tem de reduzido, seu meio é infinitamente complexo, assim como pelo fato deste universo ser re/produzido por uma mulher, isso não se quedará aqui em vão. Ao contrário, através de uma perspectiva neotropical revolucionária, se assim se pode dizer, intentar-se-á apenas discorrer sobre um único aspecto deste mundo, pontuando um ou outro elemento importante, sem localizá-lo, a fim de torná-lo ambíguo e, com isso, potente em sua universalidade necessariamente conflituosa, já que de metáforas e aforismas ele transborda.

 

Claudia Nên é uma artista e educadora sergipana que, diante do enorme interesse pela tradicional xilogravura nordestina, fundante em

sua trajetória, vem expandindo seu olhar ao fora e exercitando a moleza do que lhe apetece mitológico-politicamente na construção de esculturas em cerâmicas pintadas, na maioria das vezes, de preto e branco.

Em Caminhos, enxuto e por isso aberto, título da exposição que reúne cerca de 28 pequenas esculturas, Nên nos apresenta muitas coisas que as tornam comuns entre si – mas também a “nós”, este que inscreve o “eu” que escreve e o “você(s)” que lê(em) no acontecimento social da reflexão. Este é um debate de difícil categorização, ou melhor, de tênue definição de sentido: a relação de poder existente entre criaturas antropomórficas que, não só por isso, dispensam uma identidade de gênero. 

 

Em 1973, o escritor pernambucano, nascido e criado em São José do Egídio, Osman Lins, escreveu um romance que, há cerca de dez anos, vem sendo retomado por especialistas da narrativa e transformado em obra literária brasileira seminal, chamado Avalovara. Seu título, assim como de Claudia, é curto e profundo. Ele é proveniente de uma re/apropriação fonética que o autor fez da palavra Avalokiteçvara, que significa, em suas palavras:

“... o título corresponde ao nome de um pássaro que existe no romance. Um pássaro imaginário. Inventei esse pássaro, não o nome. Pensava guardar para mim o segredo, mas revelo-o. Há uma divindade oriental, um ser cósmico, de cujos olhos nasceram o Sol e a Lua; de sua boca, os ventos; de seus pés, a Terra. Assim por diante. É lâmpada para os cegos, água para os sedentos, pai e mãe dos infelizes. Tem muitos braços, pois não lhe falta trabalho no mundo. Seu nome é Avalokiteçvara. Não foi difícil, aproveitando o nome, chegar ao nome claro e simétrico de AVALOVARA, que muitas pessoas acham estranho [...]. É um grande pássaro feito de pequenos pássaros. Simboliza o romance e também minha concepção de romance.” (in: LINS, Osman. Avalovara. São Paulo: Editora Melhoramentos, 1973)

O pássaro, , durante o romance, não somente não se pode identificar se vai ou vem, pois o ponto no meio do círculo de seu símbolo pode representar tanto seu rabo quanto seu bico, como também não é possível, em nenhum momento, identificar seu gênero, se fêmea ou macho, assim como não é cabível compreender se é animal ou humano, feminino ou masculino. e Abel, personagem principal da narrativa, em aventura pelas Cidades e amores, se apaixonam. Mais tarde, no próprio romance, Lins deixa-nos compreender que a imagem da qual se apropriava era de uma divindade mitológica oriental que, além de representar a misericórdia e a compaixão, aos seus olhos, poderia também se reduzir fragilmente a um ser “hermafrodita”. Porém, nas mesmas meditações, o autor apresenta que desejava construir um personagem andrógino e antropomorfo assim como inclassificável perante a ficção, sem classe animal, mesmo que proveniente de um pássaro, e sem linguagem predefinida (não se sabe se fala). Aí se encontrava também um desejo do autor em produzir um ser-forma que infringisse as relações de poder existentes entre os gêneros e as classes.

O mesmo processo de inclassificabilidade se reforça no trabalho de Claudia Nên. Suas esculturas não nos deixam creditar seus gêneros, assim como suas referências animais e humanas. É comum, e de responsabilidade estrutural da sociedade ocidental, que rapidamente pensemos que cada uma delas representa ou humanos homens ou animais machos, mas é justamente nesse ímpeto de reprodução hegemônico de sentidos que a artista nos faz trabalhar. Pois nem humanos nem animais o são, e do mesmo modo não poderiam ser nem macho ou fêmea, ou masculinos ou femininos. Isso, além de ser uma incongruência, é um pensamento antilógico perante a realidade do conjunto de obras de Nên, já que nessa não relação se encontra também certa produção de caos no ordenamento de quem ou qual exerceria poder, sempre, um sobre o outro. 

 

Se olharmos por um período mais estendido os trabalhos em Caminhos, é possível que em alguém, em algum momento, tal conflito venha surgir. Talvez ele inicie no campo da linguagem, diante dos objetos, depois se torne parte da narrativa, quando sobre eles se produzir uma fala, até que, já estando em casa, deitadx na cama, ao fazer um retrospecto do dia, não se consiga dormir com a memória de tais imagens, se perguntando acerca de si mesmo em relação ao seu fora, sobre o que se é e como, a partir disso, se encontra em relação ao todo que o envolve. É importante, neste caso, compreender que a qualidade “popular” do trabalho de Nên não está propriamente dita em sua aparente tradição, na relação estreita que a artista faz aparecer no seu procedimento em tridimensionalizar possíveis imagens xilogravadas, mas na latência mitológica das imagens referentes ao seu contexto local e da sua relação político-sensível com a contemporaneidade social, no que tange apenas alguns dos debates mais visíveis de nosso tempo: essa identidade e classificação que não se deixa resolver.

Muitas vezes não se discute historicamente se certa alegoria mitológica é de determinado sexo ou não, se representa um animal ou se
é completamente humano. Ela é o que é. O que se faz é justamente debater sobre suas realizações ou, diante de sua monumentalidade e complexidade, sua produção de sentido no campo do real, do poder que exerce sobre as acepções de verdade dos humanos. No mesmo sentido, mais correto seria dizer que tanto as aparições contemporâneas dxs sujeitxs não binárixs, assim como dos que exercitam uma forma antropomórfica de si, quanto as esculturas de Claudia Nên oferecem inúmeros caminhos contraidentitários, contra- hierárquicos, contraclassificáveis, pois se encontram visivelmente opostos à hegemonia do identificado, da obtenção de poder e de sua dominação perante o todo, que se encontra na forma-ser mais bem conhecida, reproduzida e difundida na história: o homem branco, europeu, cisgênero de meia idade. Na qual, nem uma mulher nordestina, muito menos suas produções “populares” ambivalentes, nem as dissidências de gênero e de classe experimentadas e vividas ao redor dos mundos que habitamos se enquadram. Diante disso, sobra apenas um viva à qualidade sempre popular da subversão do poder!

(São Paulo, Setembro, 2019)

   Textos Criticos

logo ave_edited.jpg

  • X EDITADO
  • facebook-square
bottom of page